Vinhedo
O sol ainda mal começara a decair e a tarde, de infinita complacência, teimava em demorar-se quieta. Eu sabia, de reparo anterior, que os ninhos eram três: dois no silvado, empoleirados nas forquilhas dos loureiros, e um na vinha, rescendendo o odor açucarado da parreira. Todos tinham criação, denunciada pela azáfama procriadora das aves adultas, melros pretos. A minha óbvia inquietação escorria de fonte felina, os gatos da casa sabiam, há mais tempo que eu, o manjar que se acoitara por ali. Mesmo quando de barriga farta, o gato doméstico [que, para mim, é quimera. O gato continua selvagem e livre, não é como os cães que venderam a alma em troco de uma côdea de pão] não perde uma oportunidade de se divertir com rataria, hordas de insectos e passarada que com ele têm o azar de se cruzar. Apesar de darwinista ferrenho não ia deixar que a turma traiçoeira se deleitasse com aquelas aves imberbes, ainda mal amanhadas de penugem e a tiritar de frio quando os pais se ausentavam para procurar papinha.
Quando me apercebi dos três tunantes a jogarem pelota com o melrito de voo primeiro, peguei num torrão de barro e, com pontaria pouco menos que certeira, dei caça aos caçadores. O pássaro núbil tremia de medo e assombro, fosse um pouco mais velho e ateroscleroso e provavelmente teria sucumbido a uma síncope cardíaca. Morreu pouco depois, num aconchego improvisado na arrumação de casa, olhos abertos e pose rígida de general. Deveria tê-lo deixado morrer digladiando os inimigos ancestrais. Assim partiu sem glória, chorado pelas mulheres e por mim.
Etiquetas: agricultura, gatos, Imagens do Ameal, melros e fauna vária
1 Comentários:
Muito bom!
sábado, março 24, 2007 12:20:00 da manhã
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