Ameal é freguesia do Concelho de Coimbra

3.23.2007

Vinhedo


O sol ainda mal começara a decair e a tarde, de infinita complacência, teimava em demorar-se quieta. Eu sabia, de reparo anterior, que os ninhos eram três: dois no silvado, empoleirados nas forquilhas dos loureiros, e um na vinha, rescendendo o odor açucarado da parreira. Todos tinham criação, denunciada pela azáfama procriadora das aves adultas, melros pretos. A minha óbvia inquietação escorria de fonte felina, os gatos da casa sabiam, há mais tempo que eu, o manjar que se acoitara por ali. Mesmo quando de barriga farta, o gato doméstico [que, para mim, é quimera. O gato continua selvagem e livre, não é como os cães que venderam a alma em troco de uma côdea de pão] não perde uma oportunidade de se divertir com rataria, hordas de insectos e passarada que com ele têm o azar de se cruzar. Apesar de darwinista ferrenho não ia deixar que a turma traiçoeira se deleitasse com aquelas aves imberbes, ainda mal amanhadas de penugem e a tiritar de frio quando os pais se ausentavam para procurar papinha.
Quando me apercebi dos três tunantes a jogarem pelota com o melrito de voo primeiro, peguei num torrão de barro e, com pontaria pouco menos que certeira, dei caça aos caçadores. O pássaro núbil tremia de medo e assombro, fosse um pouco mais velho e ateroscleroso e provavelmente teria sucumbido a uma síncope cardíaca. Morreu pouco depois, num aconchego improvisado na arrumação de casa, olhos abertos e pose rígida de general. Deveria tê-lo deixado morrer digladiando os inimigos ancestrais. Assim partiu sem glória, chorado pelas mulheres e por mim.

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3.14.2007

Três poemas de João Rasteiro

Canto

Ouço o mar uivando nas fissuras da pele
das vértebras escorre uma linfa imaculada
todos os passos conduzem à inclinação do tempo
o silêncio de marfim na carne masculina
no sabor da noite o riso das cinzas
o cheiro espesso dos sonhos esquecidos
hipnotizados pela música do orvalho
aparecem e afastam-se e regressam no corpo cozido.

[A respiração das vértebras, 2001. pág. 19]

Voo vertical

No telhado das estrelas
a rapidez do corpo sobre o centro
o vazio entre os espaços
onde a folhagem regressa eternamente
e forma pares imprevisíveis.

O vento arranha as estátuas
um tronco rugoso e aves sem sentido
pelas curvas que descrevem
mas ninguém afirma que não voam
entre o bafo quente de membros apagados.

[No centro do arco, 2003, pág. 53]

Sem título

Na profusão da terra exaltada
o tempo mistura as idades
no corpo estancado dos animais.
A carne enredada na dor materna
irrompe na limpidez do espaço
o seu silêncio indecifrável ambíguo
cola-se à pele íngreme surda.
Eu sigo o murmúrio dentro do fogo
aquecendo a matéria das têmporas.

[Os cílios maternos, 2005, pág. 21]

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3.13.2007

João Rasteiro


João Rasteiro nasceu no ano de 1965, no Ameal, vivendo actualmente em Coimbra. Existem vários poemas seus publicados em revistas e antologias de poesia em Portugal, Brasil e Itália. Está ligado às revistas Oficina de Poesia e Reler. É delegado em Portugal da revista italiana Il Convivio. Aposta nas leituras públicas e colaborou em várias oficinas de poesia para crianças (a última no Centro para o Estudo da Artes, de Belgais, dirigido pela pianista Maria João Pires). Publicou Respiração das Vértebras (Sagesse, 2001). Nesse ano obteve uma “Menção Honrosa” no Concurso Internacional “Poesie Sulle Piastrelle”, em Zacem (Itália) e, em 2003, foi-lhe atribuída a “Segnalazione di merito” do Concurso Internacional “Publio Virgilio Marone”, pela Accademia Internazionale “Il Convivio”, Castiglione de Sicilia, (Itália).

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3.07.2007

Época da poda







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