Ameal é freguesia do Concelho de Coimbra

10.10.2007

Quando acorda a frescura do mundo


Era uma casa branca,
Que me chegue: no centro de pinheiros
Que me chegue que ela seja sem ser
à sua forma e no seu tempo: thor
(as casas brancas ditas no passado
excitam a magia) Que seja então:
era uma casa branca.
[Ana Luísa Amaral]

Poderia ficar assim longo tempo, embebido no ponto do universo que faz vibrar a luz, sentindo-me vivo de novo e possuído de uma leveza aberta ao crepúsculo mágico das manhãs. Como se o azul do universo dos céus não fosse o lugar bastante. O centro recôndito e íntegro do segredo. A voz que ainda não saboreou as palavras prováveis.

Os galos da índia cantam alongando-se na carícia oculta das alvoradas. Uma delícia amarga e sequiosa por entre as vozes do sono. Na calma madrugada da terra os galos celebram as vozes uns para os outros. Sob as réplicas extasiadas que vão enriquecendo as pálpebras da alvorada, no brilho dos relâmpagos onde se purifica o pólen do Sardoal, claramente apreendo a aldeia dos primeiros amieiros.

Como dizê-lo: ei-la aqui, não imagem sem cores, não moldura de seres adormecidos, mas o fogo oblíquo de todas as aldeias, a pequena nascente, a pequena giesta das artérias – essa luz na fresta dos olhos, olhos onde imagino o sol desde a minha infância, olhos que ainda vislumbram gestos trançados à volta do corpo, os gestos ateados do mundo, dispondo os múltiplos ventos que sussurram a aldeia na cabeleira dos amieiros. Sem vento, a minha garganta secou aqui, neste horto de sílabas quietas, de palavras alagadas de todos os Invernos.

Agora que a noite é imaculada e não há cidade mais viva que tu, imagem voluptuosamente virgem na masmorra dos espelhos, tu, o ténue reflexo do ser que oscila entre sonhos insondáveis e a memória que perscrute os cantos da insónia, diz-me onde se fundeia a minha carne, diz-me quem és, com teus dentes calcinados de terra consagrada, com teus olhos de nervuras e palavras orvalhadas das quimeras dos homens que o vento dissipa ou a primavera fará germinar. A arquitectura do mundo em espaços de incandescência.

Diz-me quem és e que água tão cristalina das marés vivas do Mondego treme em minha alma de bocas múltiplas; diz-me quem és e porque me visitas nos lábios de bronze da fonte dos reis quando avidamente aniquilo a sede, a secura aclamada num jorro único, num deleite único, uma permissão única, o fulgor exclusivo das nascentes, porque desces indecifrável até mim que estou tão carecido de palavras que habitam a nascente secreta do silêncio das súplicas, e porque te afastas sem pronunciar lugar, quando a cidade mostra as suas garras de pedra e aço, pedras envelhecidas sem princípio nem fim, objectos de pedra prisioneiros no seu próprio tempo, diz-me, agora que é tão imaculada a aurora em que me sento no centro do teu corpo, no rasgão de um útero que se eleva cintilante sob o alimento do crepúsculo, diz-me agora quem somos e não há cidade mais viva que tu.

Agora que sinto o coração como amieiro plantado nas entranhas enjauladas, respiro a substância dos pinheiros mansos na sementeira opulenta das Chãs, nos pinhões que enfeitavam o orbicular sacro da terra na rotação do pináculo e sou um corpo construído pela paisagem despida, sou quase um espírito cúmplice da simplicidade absoluta dos braços, dos tentáculos da chão, dos poros das ruas – pela trepidação ascendente das criaturas na Rua do Monte ou pela vibração elementar e descendente da Rua da Vila Nova e ao entardecer o odor dos homens constrangidos, como num açougue infecto e os acídicos corpos das mulheres escrupulosas sob as saias negras, discutindo a encruzilhada do universo no centro da Rigueira -, das veias rubras como pulsação da memória autónoma de um corpo, de uma voz que me retornou completa no movimento que me reavivou à plenitude do lugar. Tímidas asas aspergindo os aromas do êxtase, o aroma do orvalho que servirá de abrigo às ultimas idades da terra. O mundo como criação íntegra e inteira do mundo.

E é tempo de colheitas abastadas e não tenho searas fartas e hortos extensos. Não tenho pegas fortes ou um pequeno rebento de amieiro. E amo tanto a árvore que abre a flor da reminiscência no adorno da mudez. Os amieiros vieram de noite. De madrugada eram ecos, lugares. E os lugares esperam. Eles esperam pela poeira do branco gorgulho da memória de todos os Invernos. O lugar espera. Aceso espera a morte, a vida reinventada nas profundidades mágicas da terra. E tudo não é senão lugares de luz soberana, reinos e confins de claridade concebida. E os bandos de andorinhas subiam cada vez mais em direcção aos céus, os cães adormeciam o sol nas bermas, as ovelhas sobre aragem das ervas cheiravam a calda, aromas de existência profícua…Crescem os meus membros sobre atalhos sem sombra, sem princípio, sem fim, e pesam, alimentados pela idade da lembrança. E ouço-os a fracturar o lugar, o seu lugar, entoando o canto da insónia, o ventre rubro, o cordão umbilical da natureza. Pois pelo alvorecer é o tempo de exaltar a memória da abundância, com ramos de flores sob a axila das folhas dos amieiros.

E o meu corpo já possui pedras e aço. Invoco ao deitar-me uma tempestade de duendes, um golpe de vento libertador na folhagem das árvores guerreiras, no bafo dos fantasmas que circulam as aldeias como sentinelas, como vigias para dentro de nós mesmos, sustendo a fortuna. A ardósia cobre os telhados esverdeados ou a telha onde cresce o musgo inflamado pela paixão das chuvas. É noite sobre a minha ilha, sobre o espaço inabordável, o lugar do enigma que se confunde com a própria criação da memória, com a respiração das aldeias e do seu transitório percurso. A memória é um exercício sem conclusão e todavia é alimento.

Os lugares, de noite, são como o rio silencioso e subimos ao topo da árvore, o mundo dos mundos é nosso, é nossa a doçura da escuridão. Inquietos ressurgimos e ficamos sós de vigília no molhe das margens, procuramos o fulgor do clarão, o medo e os sonhos levam-nos à luz, ao clarão. Nenhum mistério se desvendará para o coração. Toda a memória é uma forma de solidão, a respiração, a margem das palavras.

Cumes trémulos dos amieiros, a terra negra, estrebuchando em jorros quentes, remoinhos arrastando um corpo, um lugar, vozes, homens pairando impolutos, os pés inertes e recolhidos para que nenhuma parte do seu corpo resistisse à fantasia do voo, a luz cintilante, o vento, pequenas casas trémulas, negras chaminés dos grandes mundos, a mácula luminosa da aldeia, do outro lado da ponte sobre a vala, o brilho confuso da ilusão.

Quem me refrescará antes da morte sob as fontes? Quem perfumará o meu corpo extinto de vida nos jardins odoríficos? Quem atulhará a minha boca de pedras no coração do barro? A mim lugar quem me chorará os olhos apagados de Primavera? Quem me sepultará impuro no coração dos amieiros? E as madrugadas acordarão como se a aldeia não fosse o lugar bastante, o coração como a terra inclina o rosto à vida?

Apesar de tudo continuam a existir as palavras fincadas aos pulmões que nos metem medo ao coração. Abro a passagem e invado o teu espaço, aldeia. Palavras, memória, sopros, a frescura do mundo, um corpo, um outro espaço que irrompe, da aldeia, das abrigadas ruas, da Rua da Fonte, do passado, de múltiplas e doídas constelações de outras existências, de outros sabores. E sou todas essas realidades inaudíveis, abertas, expostas, incompletas, em movimento por entre as humanas vozes que em mim florescem. Este ainda é o segredo que o amieiro me revelou.

Uma manhã de próximos olfactos, quando já tiver passado a reclusão das estações e o Inverno se tiver dissolvido em ventos de Primavera, em ventos arrebatados às forças ocultas da paisagem, acordarei múltiplo no chão, agasalhado num sudário de lençóis calorosos, a geografia do mundo.

Agora é o momento em que a noite termina e a madrugada principia. A doce circunstância em que a aldeia desperta da húmida neblina. Os amieiros que lhe digam que chego tão breve como o rosto da esperança.

[João Rasteiro]

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10.04.2007

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[Anos 70]

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