Ameal é freguesia do Concelho de Coimbra

5.14.2007

Padrões



[Parede, granizo sobre relva, silveira, macieira em flor]

Etiquetas:

5.02.2007

O regresso dos amieiros

Quando não chove, confusamente dispo-me atrás dos amieiros e abandono-me à corrente. Sigo para o sul, que é para onde correm todos os rios...

[Eugénio de Andrade, Memória de outro rio, 1978]



Aprendi a regressar e os passos em volta para dar com as ruas estreitas e as gentes de calor imenso. E abro a memória da pele como se fosse um livro, mastigando em suas páginas, os seus poemas, os seus ecos, o destino que me prefigura.

Aqui, agora sob a seiva, ainda colho o calor no cume da alegria, os amieiros são de um azul celeste, o lugar ganha a espessura do corpo sobre o dorso, o rio lambe. Por vezes, ainda ouço as árvores, os pássaros, incluindo os guarda-rios, e os sapos na vala do campo, a pesca dos sonhos no curso das águas até à nascente ignorada e pura, agora que todo o campo, todos os animais, todas as aves, toda a terra, todos os amieiros me pertencem, regresso, até ao fim do mundo – a terra era viva, translúcida, e tinha um cheiro morno que entontecia. Porque era nela que eu frutificava, pungente.

Há uma aldeia que não finda, num estertor de palavras ateadas, nem desvia o seu trajecto de longas fissuras na suspensa eternidade do lugar, primitivo e absoluto.

São coisas simples que procuro lembrar. As coisas simples das grandes noites do mundo. Estamos em 1996, é Outubro, o vento assobia baixo, imitando por vezes o canto de um pássaro agonizante, e eu à procura do meu pai, olhando-o nos olhos, olhando-o violentamente de uma parte gerada da sua carne, a parte mais iluminada da sua carne sonhadora, porque a noite se aproxima. Amanhã também morrerei, ateado.

Passo de uma pequena fronteira a outra, imensamente grande, e na qual se perdeu, talvez no largo da Rigueira, no lugar onde os velhos bebiam o sol, a eternidade, o olhar que procuravam, o olhar que procuro nas linhas improváveis de um poema, os brancos cílios, os negros olhos de meu pai, negros como a noite que se aproximava. O Inverno adquirira um rosto. O dele. E também ele encontrara um rosto. O seu próprio.

As paredes da casa e os soalhos de pedra obscura, todos lascados sob os pés – os astros com a precisão matemática de uma geografia sobrenatural, por dentro da sílaba, no interior maduro das mãos. Lá fora havia os montes, o voo dos pássaros, o vento nu.

Os pássaros sobre os pinhais do Sardoal, o coração estendido dos pássaros abrindo feridas, que sangram – pedem-me que restitua a madrugada, e que apague este homem de passagem, o corpo adormecido na luz prateada dos amieiros.

Em 1996, Outubro rebentava no corpo, espraiava-se no sangue, era quase audível o crescimento dos hortos, a viagem dos líquidos subterrâneos, sentia-se no bafo da morte a pulsação do mundo, o renascer das cobras frescas, como se tudo estivesse dentro dela, corpos, pássaros, rios, amieiros, asas e céus. A amarga melancolia.

O corpo que revela o sangue para além dos campos em movimento, e que o sangue descobre. Assalto-o. Como um fósforo já queimado de todas as memórias. Não posso lembrar-me agora, do cheiro do orvalho rente ao barro, do cheiro do azeite no lagar e do cântico dos peixes no Mondego – da raiva e das suas extremidades, por ter perdido a viagem, os frutos da memória. Somente o meu silêncio pesa nos olhos do meu pai.

Um dia, também eu encontrarei a morte no meio dos amieiros, ela dará então uma volta pela aldeia, refrescar-se-á na Fonte dos Reis e continuará a caminhar através do infinito vazio, e eu esperarei com um livro aberto, talvez a Divina Comédia, de Dante, no capítulo sobre o inferno, repousando e esperando ao cimo do movimento como ser pasmado, antes de chegar a noite. O pulo do corpo para a terra, da criança alva, o cheiro dos novos corpos neste lugar – como se eu voasse e brotasse sobre a raiz ríspida da colina. Um corpo na lembrança excessiva de outro corpo, antes de chegar a noite.

Olho em volta: eu e o meu pai e com todas as memórias que se somam ao meu corpo, e que tu, e contigo todas as memórias, tu aldeia, em que descobri a forma dos fetos, o êxtase do tempo, até conseguir fazer soltar a primeira respiração, a respiração do lugar inicial, a respiração purificada dos animais sob os amieiros.

E as velhas lembranças reúnem-se no cérebro, como magnólias pensando, pedindo-me o condão do paraíso, alguma coisa audível, mas, escondo-as na pele - toda a memória, para que se esmaguem umas às outras no recato das sombras, estranguladas por uma beleza infinda, incomparável, até que o tempo as torne palpáveis.

Os lugares são fabulosos quando digo lugares. Nas ruas e no largo da Rigueira não passava ninguém, a aldeia hibernava, estava morta, dormia, dormias pesado, pai. Podia abrir uma fenda nos dedos, e respirar o ar fresco das cidades, libertando-me deste sopro interior, deste sopro que cicatriza nas feridas abertas no Outeiro ao fim da tarde, na inquietação do corpo quanto ao destino, quando em 1996, sob o vento de Outubro, antes que a noite se aproximasse, te procurava por entre os odores dos amieiros, porque o amor é forte como a morte, mais forte que a eternidade dos mortos – te procurava na pureza do linho e das mortalhas sagradas, pai.

E hoje, na Primavera em que todas as memórias morreram, enterrei o teu nome num canteiro de magnólias de cristal e olho-o de longe, para que a minha boca não se rasgue mais em suas arestas. E ele ferve. E colho flores e as minhas vestes ficarão perfumadas. Regresso quando a palavra se detém no sémen dos amieiros, enquanto construo a memória de que eles fazem parte, com a solidão nua das vozes que os protegem de mim.

João Rasteiro

Etiquetas: , ,